Contos

Pedras Parideiras

 

Francisco guiava a aldeia que o seguia por campos de milho, montes, atravessando ribeiros, para indicar ao povo estupefacto o berço das pedras parideiras. Os corpulentos pedregulhos, descobertos e batizados por Francisco com o nome de pedras-mãe, encobriam a crista do cume e ao longe pareciam indistinguíveis de qualquer outro campo de pedras no cabeço da Serra da Senhora da Freita.

Nesse Domingo, a excitação era tal que a missa fora cantada pelo caminho enquanto marchavam sob o nascer do sol raiante. Um rosário de povo seguira Francisco lembrando-lhe o seu próprio rebanho de cabras, não fora as preces que ecoavam das escarpas. Preces mais estridentes que os costumeiros chocalhos dos caprinos.

Desde criança que Francisco passava a serrania a pente fino. A princípio, acompanhando os primos com os seus rebanhos de ovelhas, mais tarde, só por si e com as suas cabras, apesar do seu pavor às descargas elétricas do céu.

Trepava aos cumes da serrania em alto verão, cumes tão familiares como os nós das mãos e ocupava os dias na pastagem a tocar pífaro, imitando o vento, melros ou qualquer criatura da sua estima. À noite, incorporava-se ao rebanho na sua cama de tojo, aconchegando o seu sono entre os corpos de lã.

«As pedras-mãe vão dando à luz desde a alvorada do mundo», Francisco informou os aldeãos que o rodeavam. «Lembrem-se que têm os pés sobre o berço da terra».

Assim que cada homem, mulher e criança satisfez a urgente curiosidade de uma boa olhada às pedras, dispersaram-se para o almoço. Florindo Ramos e os aldeãos mais reverentes, temendo os poderes atribuídos às grandiosas pedras, distanciaram-se, fazendo o seu piquenique numa clareira mais afastada, e á distância de uma cuspidela de azeitona do ribeiro. Ti Clemente e os mais ousados, colocaram toalhas de mesa sobre os pedregulhos, improvisando mesas para o requeijão, a broa e o vinho.

Depois do repasto, as crianças seduzidas pelas camadas de sedimentação, a lembrar escamas de ouro, apressaram-se a colecionar as pedras-bebé em forma de mexilhões. Ao colo das pedras-mãe as crianças detetavam mossas, depressões parecendo bolsos de onde as pedras paridas saltaram para a vida. As perplexas crianças esforçaram-se para devolver as pedras-bebé ao regaço das pedras-mãe. As crianças entretiveram-se pelo resto do dia cativadas pela tarefa e quando o sol murchasse, nesse fim de tarde, teriam que ser afastadas, lavadas em lágrimas.

 

Encostado a uma pedra-mãe, a marcar cadência com o pé, Francisco tocava pífaro. Sorria para o seu cão que diligentemente abanava a cauda ao sabor da melodia. Pelo canto do olho Francisco observava os homens da aldeia a afastarem-se da algazarra das crianças, vagueando em direção a outro afloramento de pedregulhos. Rodeavam as pedras, mãos nos bolsos, dando-lhes pequenos pontapés de curiosidade. O Correia auscultava as pedras com o seu estetoscópio, desejando ajudar a despachar o nascimento, «Está-se mesmo a ver que só precisa de um empurrãozito», disse o Correia, restituindo o estetoscópio ao bolso. Discussões animadas seguiram-se. Os homens esperavam ansiosamente que as pedras-bebé se ejetassem dos ventres. Sonhavam em as apanhar em voo, «Dá mais sorte se não tocarem no chão», disse o presidente da Câmara Tadeu Ressaca. Depois de algum tempo, Ti Clarissa e as outras mulheres, cansadas das crianças constantemente aos calcanhares, aproximaram-se dos homens e apreciavam a situação de braços cruzados sobre o peito.

«Deixem-nas em paz. Elas sempre lá se desenrascaram sem a vossa ajuda», disse com olhar severo, Ti Clarissa ao seu marido Ti Clemente. Os homens não lhe prestaram atenção. Ela traçou leves carícias sobre os perfis das cabeças das pedras-bebé e pegando numa, encostou-a ao peito.

Esfregando as mãos calejadas, Ti Clemente arranjou por fim coragem para trepar ao colo de uma pedra-mãe. Ouviu-se um longo assobio de espanto. Os outros homens juntaram-se-lhe de imediato.

Do regaço das pedras-mãe o panorama alargava-se para além das copas da serrania e por um instante os homens  acreditaram que era possível tocar no mar da Baía da Boca do Inferno, a poente, e Viseu, a nascente. As duas situadas a um dia de distância a pé.

«É a verdade pura quando dizem que o desejo dos olhos viaja mais lesto que o querer do coração. O coração tem de carregar com a carne, os ossos e o resto do corpo», disse o Professor Manecas e toda a gente concordou.

(…)

excerto                         ©paulodacosta

de:  O Perfume da Mentira,  LPD 2012  – paulo da costa (Autor)

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O Perfume da Mentira é um livro de catorze contos interligados que se desenrolam em duas aldeias carismáticas de Portugal e podendo mesmo ser lido como um romance em retalhos.

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