Contos

Um Punhado de Ilusões,

 

Eu, o diabo? Nunca. O diabo não se atrevia a dedicar-se a estas canseiras, estes riscos. Eu gasto as pontas dos dedos até ao giz do osso só para agarrar clientela. Ah… não como a vida de padre, feita à medida, simplesmente a deslizar para dentro de uma batina e a esborrifar umas lufadas de incenso perfumado no altar, e de imediato as gentes correm das suas colmeias para os bancos da igreja. Padres nem se preocupam em engendrar novos milagres de valia,  amparam-se em milagres tecidos há tanto tempo que já ninguém os põem em questão. Qual é a alma viva que atesta esses milagres de seus próprios olhos? Histórias mal rabiscadas. Um punhado de esgravetos de galinha no papel são prova! Cá para mim, uma cachimónia inchada de inspiração e com uma pipa de imaginação fermentada, entornou uma história e pêras. Quem me dera ser abençoada com tal sorte. Esse tipo de sorte cheira a tramoias de fidalgo. No meu caso, a minha vida é mais áspera que pele de sapo. Veja bem as minhas mãos. Está a ver, não são nada como as de Sua Eminência, macias como a cera das velas. Não senhor. Eu devo mostrar o que valho. Houve uma procissão de gente antes de mim  dizendo-se santos, deuses, adivinhos e sabe Deus o que mais. Mas eu… eu não pretendo fama ou riqueza. Só peço para ser deixada em paz com pão suficiente para calar a barriga.

Claro que não possuo instrução, não posso desemaranhar sentido aos arabescos de pluma nos livros. Tudo o que sei aprendi com os olhos do dia a dia, observando as gentes, ao ritmo da enxada, ombro a ombro, prestando atenção ao seus sofrimentos, anseios. Eu tenho que mostrar à minha gente, à cara delas, que posso visitar o passado, prever o futuro e apresentar uns milagres de jeito. Pelos menos isso. Não exigem muito, mas têm gosto em ver uma coisita ou outra fora do comum. Não os posso culpar. Afinal de contas, estão a pagar alqueires de milho que lhes custaram o sal da testa a ganhar. Bem, quer agora culpar-me só porque uso uns truques inocentes para dar uma ajudazita ao ofício? Por amor de Deus, eu sou carne e osso. Tenho as minhas limitações. Não está à espera que eu separe as águas ou cure os cegos. Eu uso técnicas ancestrais  para dispensar um punhado de ilusões, está a ver? É um devaneio. As gentes não se importam. Claro que não as informo das inofensivas ilusões. Lembra-se do dia que lhe disseram que o São Nicolau existia? Com certeza que teria preferido continuar a acreditar na crença de um sonho mais agradável, não era? Pois sim, não contar historietas em primeiro lugar seria bom, lá isso seria…

 

 

Que um raio me fulmine se não estou a falar a verdade, mas na verdade desde o berço do mundo que temos estado a enganar-nos uns aos outros um chisco. As Sagradas Escrituras de Sua Eminência até me emprestam razão. Não, não penso que sou mais Papa que o Papa. No princípio Adão e Eva traíram-se um ao outro. Pois, eu não estou a despir nenhum segredo. Talvez hajam mais falsidades hoje em dia mas é a fome da necessidade. Todos têm de comer, mas poucos desfrutam das espingardas e das terras para cultivar o centeio. Assim eu acabo por ter que enganar as minhas gentes. Os que também não têm nada. Sou abençoada com mais dois dedos de engenho ou talvez uma costela mais pesada de ruindade. De qualquer maneira as gentes preferem andar calçadinhas nos sonhos e fantasias do que andar descalças pelas silvas da vida. Se Sua Eminência não se importa que eu diga tal, e se não se ofende, eu até me atrevia a dizer que estamos no mesmo ramo de negócio. Vendemos sonhos, fantasias e esperanças. Não fique aborrecido. Claro, nem me passaria pela cabeça insinuar que não sabe o Evangelho. Eu sou uma migalha comparada com a instrução de sua Eminência e talvez até tenha pisado o risco, usurpado um bocadinho d’almas a mais ao seu rebanho. Mas pela alma da minha falecida mãe juro… sim claro que não juro porque é pecado e nós estamos na casa do Senhor. Dou-lhe a minha palavra de cristã então, pela alma da minha falecida mãe que era uma santa, que as gentes desembocam à minha porta de livre vontade. Ora bem, se a Sua Eminência assim o diz… se diz que é o senhor que decide quem merece ser santo, por mim também está tudo bem. De qualquer maneira a minha mãe foi uma santa para mim.

(…)

excerto                         ©paulodacosta

de:  O Perfume da Mentira,  LPD 2012  – paulo da costa (Autor)

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O Perfume da Mentira é um livro de catorze contos interligados que se desenrolam em duas aldeias carismáticas de Portugal e podendo mesmo ser lido como um romance em retalhos.

(2012) – Livro Papel (140p) Format: 196 x 126  – ISBN: 9789729954368

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