No Limiar de um Século…
CRÓNICAS DE CALGARY
O DESPERTAR DE UMA CULTURA REJUVESNESCIDA
Portugal, após viver grande parte do século XX em entorpecido isolamento e enclausurado puritanismo cultural, parece presentemente despertar o interesse de outros povos, através da sua cultura, Língua, e principalmente através da vitalidade das renovadas heranças da lusofonia disseminadas pelo mundo.
A língua e cultura lusitanas, nas suas recentes mesclagens com África, América do Sul, e de um modo mais ténue com a Ásia e a Oceânia – não esquecendo as sementes da diáspora povoando os recantos do mundo – evidenciam, após longo interregno, um enérgico desabrochar .
Na semana que antecedeu o Natal, a CKUA (1927) – emissora pública de rádio mais avó do Canadá, e sediada em Alberta – dedicou uma hora da sua programação habitual com um destaque musico-cultural intitulado “Um Natal Português”. Três convidados portugueses e a locutora, Lark Clark, conversaram sobre a típica gastronomia do Natal português, abarcando evidentemente o bacalhau e as filhós, passando pela aletria e o Bolo-Rei. A Missa do Galo, as Janeiras, permearam também um diálogo regado generosamente com de música Portuguesa.
Sendo eu ouvinte assíduo da CKUA, tenho-me apercebido de que ultimamente a música de expressão portuguesa está a receber tempo de antena fora do comum. Da Guiné ao Brasil, das mornas de Cesária Évora ao Fado da Mísia; os sons lusófonos esvoaçam pelos céus radiofónicos de Alberta e, pelas asas da difusão da CKUA na Internet, estendem-se também a todo mundo. Os Madre Deus e a Dulce Pontes já são nomes cada vez mais reconhecidos e identificados com Portugal.
Esta constatação é significativa tendo em conta que a CKUA não é uma estação de cariz étnico. A sua audiência abrange a vasta e diversa província de Alberta. A popularidade dos sons lusófonos reflecte, na minha opinião, o âmbito de uma musicalidade que percorre as sensibilidades melancólicas de um fado e se expande até à exuberância de um forró.
O Nobel da Literatura atribuído a Saramago, quase ao dobrar deste século, evidencia a atenção dispensada às vozes portuguesas pelos respeitados avais culturais do mundo. Muito embora exista quem sublinhe que o Nobel se presenteia ao indivíduo e não à Língua, eu diria que o escritor e a Língua são inseparáveis. Da mesma forma que um escritor(a) apresenta uma maneira distinta de exprimir o seu relacionamento com o mundo que o rodeia, o mesmo sucede com cada Língua, tornando-se veiculo distinto da articulação da voz desse mesmo escritor. Escritor e Língua existem em interdependência e moldam-se mutuamente através desse percurso de decifração de sentido, experiência e comunicação.
Portugal e a cultura portuguesa entram no novo século enriquecidos pela polinização oriunda de culturas por si previamente colonizadas e oriunda das culturas da diáspora. Essa vitalidade advém de uma súbita abertura política e cultural encetada com a Revolução de Abril, assim como uma abertura mais vagarosa através das sementes de aculturação da emigração. Neste novo século antevejo um dinamismo cultural exuberante, proveniente das novas lusofonias, abrindo-se a Portugal a possibilidade de tirar proveito desses ventos impulsionadores.
Presentemente, já se salientam inúmeras vozes, tanto da diáspora como das subsequentes gerações de raiz lusitana que entram agora nos palcos culturais dos seus países natais. Nomes como os da Katherine Vaz, nos E.U.A ou Erika de Vasconcelos no Canadá, no que diz respeito à literatura, serão vozes que de certo se afirmarão no panorama literário da América do Norte, notando-se desde já a inclusão nos seus trabalhos de uma herança lusitana. Pressuponho que este “desabrochar” das raízes criativas lusitanas também se desenrole actualmente em todas as outras áreas artísticas.
A tensão inerente à actividade criativa, enquanto abraça os pontos de contacto e fricção entre culturas distintas, reintegrando-as numa renovada coerência criativa, apresenta-se como uma força impulsionadora de transformação. Esse fogo, essa explosão, que num aspecto mais tecnico-materialista nos ofereceu a câmara de combustão, impulsionou-nos tecnologicamente, rompendo os limites da própria gravidade terrestre. Culturalmente as possibilidades também poderão ser radicais e visionárias. Pensamento e culturas fundadas e em contacto com as suas raízes de origem, e simultaneamente abertas ao mundo, poderão ser impulsionadas para horizontes que ultrapassem limites previamente presumidos como intransponíveis.
A Portugal depara-se o desafio de não menosprezar as vozes da diáspora, sob pena de condenar ao ostracismo elementos da sua própria identidade. A identidade portuguesa não se cinge à orla Atlântica europeia. Quem em Portugal não possui familiares ou conhecidos que vivam ou tenham residido para lá das fronteiras políticas do país? Os rebentos que Portugal lançou ao mundo e, ainda que pareçam remotos, continuam firmemente ligados às suas raízes. Estas são as vozes amadurecidas e transformadas que regressam, quer de vez, quer em peregrinação, às suas origens e preparadas para ponderar e partilhar as suas experiências.
Não seria sensato se Portugal descuidasse a diáspora e as segundas gerações emigrantes, sob pena de perder uma importante vitalidade criativa da sua raiz. Da passada subjugação à inércia, resultante de uma pureza enclausurada, até à presente hábil opressão da sua voz enquanto colónia cultural das grandes potências económicas, parece-me um percurso que oscilou de um extremo ao oposto. Em contrapartida, talvez nos valores da diáspora residam muitas das possíveis soluções para enfrentar o globalismo de homogeneização cultural que se avoluma.
Muito embora Portugal tenha tradicionalmente seguido nas pegadas das correntes culturais dominantes anglo-americanas, francesas ou alemãs, talvez tenha chegado a hora de examinar a estratégia e a experiência dos seus “emissários/emigrantes” vivendo em permanente contacto com essas culturas dominantes. A diáspora conhece intimamente os slogans e a banha da cobra insistentemente apregoados globalmente, apresentando a particularidade e a vantagem de viver nas entranhas dos monstros do poder. A cultura da diáspora é inerentemente uma cultura de resistência interna.
Nós, seres da diáspora, somos os Centauros do mundo. Impuros. Mesclados. Parcialmente reconhecidos e identificados com o cardume de origem mas simultaneamente apresentando características que nos demarcam e separam desse cardume, somos frequentemente acolhidos com reservas em ambas as orlas. Vistos como seres em limbo, sem tribo nem pátria. Nós que falamos ambas as línguas, nós que nos estendemos de uma orla à outra. Nós as pontes.
Convém relembrar que no decorrer da História as ideologias de pureza, frequentemente traduzidas em nacionalismos, reliogiosismos, etc, resultaram repetidamente em rios de sangue para a humanidade.
A criatividade como fecundação pressupõe um ponto de encontro entre entidades/identidades distintas. Daí nasce uma terceira com traços de ambos mas inquestionavelmente distinta. Um terceiro coração pulsa nos nossos peitos. Na amplitude desse coração reside a tolerância, a inclusividade e a criatividade com espaço para crescer e abraçar o infinito espirito da diferença. Os sentimentos são semelhantes ao carinho e amor que se sente por pais, irmãos etc e pelos quais não se coloca a questão de hierarquizar sentimentos.
Nós, as novas e crescentes identidades do século XXI, coexistimos com as nossas diversas pátrias, línguas. Somos identidades que abraçam a inclusividade, sendo repositórios das contradições multiculturais e humanas, do presente e do passado, atempadamente digeridas e transformadas.
A palavra de ordem não é hegemonia de uma herança cultural sobre outra mas sim a coexistência, cooperação e integração tanto interna como externa desses valores.
Essa capacidade humana existe no interior de todos nós. Agora é necessário alimentá-la.
©2001paulodacosta